Cambaco
Livro de desenhos
Editora SM 2017
Cambaco
por Angela Lago
Em Moçambique, o elefante velho, afastado da manada, chama-se cambaco.
Esta é a única palavra deste livro, a aparente chave para a sua leitura.
No decorrer das páginas, esse animal caminha na sua solidão. A atmosfera
tem algo de ancestral, mítico, alguma coisa de surreal, onírico, por vezes
grotesco. O leitor maduro, mesmo que ainda jovem, acompanhará o personagem em contínua perplexidade. Será confrontado com enigmas, e terminará por tecer, junto ao poeta-desenhista, sua escritura silenciosa.
Manu Maltez é um autor de muitas facetas. Escritor, músico, cineasta,
artista plástico. Essa sensibilidade tão múltipla se revela neste trabalho no uso diversificado de planos e recursos formais e, principalmente, no desenho de grande economia. Sua palheta se reduz a poucas tonalidades. Seu traço deixa à mostra o movimento, a espontaneidade do pincel que procura e esboça. É nessa crueza que alcança vigor e expressividade.
Essa eloquência com o mínimo coincide, por assim dizer, com as dicotomias
do personagem. O que há em um elefante que nos remete ao mesmo
tempo ao excesso e à falta, à selva e ao circo, à força e à fragilidade?
Sua figura, tão presente na mitologia, carrega essa dualidade de opostos.
Como o Deus Ganesh, com sua cabeça de elefante e um rato de montaria.
Talvez neste animal extravagante vejamos a nós mesmos, o que de paradoxal há na humanidade.
Em Cambaco, o homem velho é devorado pelo elefante, que, por sua vez, é
devorado por uma baleia. Joseph Campbell, no livro O herói de mil faces, conta uma história zulu onde uma mãe e duas crianças, engolidas por um elefante, encontram no estômago do animal, rios e florestas. O elefante representa então a imensidão do inconsciente, a grande-mãe, o útero do mito de renascimento — lugar que, por excelência, é da baleia. É dentro dela que Jonas vive seu inferno até ser devolvido à terra. Também Mircea Eliade fala sobre o mito iniciático e a travessia necessária: entrar e sair do labirinto.
Manu desenha essa viagem por um mundo avassalador de minotauros
e girafas sem pernas. Talvez fale de nosso tempo. Este tempo onde a guerra
explode sem cessar, onde um sistema perverso acelera as desigualdades, onde toda a natureza é colocada em risco...
Cambaco atravessa esses cenários desolados e segue em frente. Uma ave
se aproxima. Volto a lembrar dos mitos de passagem, onde o pássaro representa crescimento e elevação. No entanto, a ave revela-se um abutre. Cambaco definitivamente caminha para a morte.
Quem sabe, seu alento final seja também um sopro criativo. Teríamos então o renascimento que falta para o mito se completar: o do homem velho,
engolido pelo elefante, na continuidade da vida humana. Vale observar nas páginas finais, que anunciam a última travessia, a mudança do traço do artista, que abandona a busca inquieta por uma imprevista leveza.
ANGELA-LAGO
Catálogo White Ravens - Biblioteca de Munique 2017