As Neves do Kilimanjaro (2006)
Manu & O som nas alturas
Por Marcelino Freire
Manu é muitos. Manu multiartista, digamos. Desses que a gente descobre em São Paulo. Tromba pela noite. Cidade plural, essas coisas. Manu é paulistano, nascido em 1977.
Conheci o trabalho do Manu no Degraus. Um bar que ficava na Vila Madalena, perto do cemitério, à boca da Rua Inácio Pereira da Rocha. O primo dele, um querido amigo escritor, foi quem me levou lá. O primo: Pedro Biondi. Um prosador de bestiários. Digo: a literatura de Biondi circula por matas e bichos. Inventários florestais, sei lá. Um talento familiar.
Voltemos ao Degraus: a gente subia uma escada encalacrada e dava de cara com o Manu e um grupo de músicos. Ele reinventando uns artistas. Interpretações minimalistas de compositores como João Bosco, Adoniran Barbosa, Milton Nascimento. Não lembro. Um talento, repito. Há uma hora em que as palavras ficam esquecidas. Boiando. Mas vamos que vamos. Um, dois, três.
Manu chama-se Manu Maltez. O cara é compositor, cantor. Toca piano e violão e contrabaixo acústico. É arranjador e ilustrador. Desenhista potentoso, sempre presentemente na revista Ácaro. Revista comandada por jovens escritores, já em seu terceiro número. Manu tem um traço marcante. Fino e delirante. Essa bosta de Brasil parece que esconde o que é bom. Manu já era para se endinheirar, viver de suas artes.
Por exemplo: um dos passatempos do Manu é ilustrar o "Grande Sertão: Veredas". Por exercício do prazer. Já tem várias páginas. Manu também escreve umas óperas literárias, digamos. Compõe uns versos. Desenha uns ritmos. Há pouco lançou um disco independente. Não falei? Essa bosta de Brasil. O negócio é sair da sombra, na teimosia. Colocar o som nas alturas.
O CD é o As neves do Kilimanjaro. Manu vem acompanhado do Grupo Cardume, fundado por ele em 2001. No dia em que fui ao Degraus, o Manu me deu o primeiro CD deles, demo e improvisado. Já gostei de cara. Desenho do cabra, letras, som, a maioria dos arranjos e fodeu! Agora, ele vem mais encorpado. Mais maduro, digamos (ao lado, registre-se, de: Amilcar Rodrigues, Leonardo Muniz e Thaís Nicodemo - ela que co-produziu o trabalho e canta belamente).
Leiamos:
A madrugada precisar estourar
algo precisa acontecer
antes que a gente se perca
nessa cozinha
do nosso jeito de ser
- Ah, mulher...
esquenta o café.
Trecho esse de uma das mais lindas canções do Manu, a "Cafeína". E tem mais:
Deve haver um campo
santo
antro
dentro da pessoa
que por alguém se apaixona
sem saber sequer
seu nome
Pode ser Antônio
barco
solto
pode ser Thereza
nuvem
vespa
Quem por alguém se apaixone
sem saber se foi em nome
do amor
Pô! Sei que é um saco essa coisa de ler letra de música sem a música. Acima, é a canção "Os Sem-Nomes do Amor". Na verdade, não resisto. Só para a gente ir afiando, aqui, uma conversa. Digo assim, eu e você, caro internauta. Aguçando o seu ouvido para os sons do Manu.
Os trapézios que ele vai construindo. Montando uma brasilidade são-popular de Sampa. Uma sinfônica toda dele. Lírica paulistana, pois. Na batida continuada a partir, digamos, de Itamar, Arrigo, o grupo Rumo e por aí sigamos. Lembrando do Villa-Lobos idem. Do Miles Davis. Esse, de alguma forma homenageado, dono de um disco chamado Files de Kilimanjaro.
Ainda, em tempo: As neves do Kilimanjaro é nome de um conto de autoria do Hemingway. Virou cinema, inclusive. Manu está assim, em tudo que é praia. Um cardume dourado. E raro.
Inclusive, se você quiser navegar mais, acesse: www.grupocardume.com. Ou vá lá, na revista Ácaro. Ou fique ligado. Pelas esquinas da cidade. Nesse mar de automóveis.
Gente que faz a diferença. Um dia a gente acorda. Ou amanhece. A arte de Manu é cheia de sol. Oh! Pela epígrafe encontrada no livro do Hemingway, explico melhor:
"Kilimanjaro é uma montanha coberta de neve, a 6 mil metros de altitude, e diz-se que é a montanha mais alta da África. O seu pico ocidental chama-se 'Ngàge Ngài', a Casa de Deus. Junto a este pico encontra-se a carcaça de um leopardo. Ninguém ainda conseguiu explicar o que procurava o leopardo naquela altitude."
Nem sei eu por que me meto, aqui, a falar do Manu. Não tenho apetrechos, me parece. Para destrinchar arranjos. Dizer o quanto o cara é tantos. Sigo tentando. Um dia eu chego lá. Aos pés de algum lugar.
Fui.
Texto pubilcado no site musical Gafieiras em 2007
Ficha técnica
Manu Maltez - baixo/voz/composições/arranjos
Thaís Nicodemo - piano/voz
Arnaldo Nardo - bateria
Amilcar Rodrigues - trompete
Leonardo Muniz - saxofone
participações
Giuliano Rosas - clarinete
Fabio Cury - fagote
Mairah Rocha - voz
Letra
Cafeína
(Manu Maltez)
São bois
negros grãos
berrando na despensa
arrebentando a madrugada
São bossas
vinhetas nossas
preenchendo os cantos da casa
da multidão
São grilos
tiros, sinos
usinas sem som
no escuro do quarto
nossa respiração
e esse balanço cego
bambenado entre
tudo ou nada
são peneiradas
mas quem será que passa?
A madrugada precisa estourar
algo precisa acontecer
antes que a gente se perca
nessa cozinha do nosso jeito de ser
ah mulher..
esquenta o café