Fábulas Incontornáveis
Exposição de desenhos e gravuras na Galeria São Paulo flutuante de Regina Boni em 2018
A atuação de Manu Maltez envolve diversos campos independentes que poderiam bem seguir assim. Mas, o sentido dessa exposição será outro à medida em que esses trabalhos sejam vistos à luz de suas composições sobre um Brasil profundo e obscuro, um mundo que a figuração urbana só consegue perscrutar em condições mais rasteiras, como no parto de um urubu.
A fábula é inequívoca, mostra o pacto com a selvageria, decide invocar a garra, no lugar da asa quebrada, acolhendo uma animalidade que se converte em talento puro, capaz de consumar os desejos de pertencimento tanto à tradição como ao folclore. Há um diálogo aberto com a figuração matricial de Goeldi, especialmente, mas também de Marcello Grassmann, em uma gestualidade estridente que, por vezes, encontramos em Ivan Serpa. E isso serve menos a uma contextualização do que o ímpeto que faz o desenho ilustrar uma lenda que envolve a própria voz. Ali, no lugar de uma apropriação paródica do elemento rural, algo cuja boa intenção não pode ser questionada, essa incorporação se dá numa clave satírica que, no campo da música brasileira, o aproxima de Arrigo Barnabé e aqueles que trouxeram a oralidade para o espectro técnico com dicção mais berrante, muito contrastante com a fluidez tímida e granulação aquarelada da bossa nova, que entoaram uma natureza e urbanidade mais dócil.
Nesse sentido, suas experiências com a animação nos trazem uma simultaneidade em que tudo se potencializa na relação mágica entre o natural obscuro e a técnica luminosa que faz vibrar as linhas como feixes. Não é demais lembrar de William Kentridge, artista que mostrou uma possibilidade para além das prescrições mais acadêmicas que vieram a separar as especialidades como uma iniciativa mais importante do que qualquer traço de personalidade. E de contemporâneos de Manu, como Nuno Ramos e Fabricio Lopez, e outros poucos que ousaram penetrar no veio e deixar sangrar a fúria de nossa natureza.
Rafael Vogt Maia Rosa, agosto 2019