O Templo do Cachorro Azul
Pinturas, afrescos, esculturas e desenhos
Na Galeria São Paulo Flutuante
2021
O Templo do Cachorro Azul
Manu Maltez
18 de Janeiro de 2021
O Templo do Cachorro Azul é o resultado de uma inesperada residência artística em um galpão fechado localizado no bairro da Barra Funda em São Paulo. Nesse determinado espaço se daria a inauguração em março de 2020 de uma nova galeria de arte, a São Paulo flutuante, na qual eu acabara de embarcar como sócio, em uma empreitada nunca dantes imaginada ao lado da amiga e marchande Regina Boni. Sim, pulei o muro. Um artista-galerista. Conta outra. Seria possível?
O circo estava todo armado para a abertura com uma exposição de um outro criador, não eu, claro. E então, sabemos todos muito bem o que aconteceu, e ainda acontece. De novo, nada de novo, a peste. Com a galeria lacrada, impossibilitada de qualquer flutuação, me vi apavorado diante daquele espaço vazio. Um pé direito de dez metros mais ou menos e um contrato de aluguel de 30 meses, exatamente. Morando provisoriamente na casa de meus pais, a poucas quadras do espaço, depois de uma temporada-exílio na casa vazia da tia em Iguape, fruto de dívidas e incertezas existenciais, o galpão passou a ser a única saída para não assumir o surto. Fui juntando os cacos e assumi o que sempre quis ser: um pintor de igrejas. De uma religião inventada. Antes do Verbo. Um anjo caído, um monge esquecido. Um sacerdote da madrugada. Note-se, naquela época, os supermercados, farmácias e templos eram os únicos lugares que ainda permaneciam abertos. O galo cantou. Galeria de arte uma ova. Comecei obviamente pelas paredes gigantescas, criando afrescos com lápis pastel, do piso ao teto, e vice e versa, em uma área de uns 250 metros. Mas isso não bastava. Embora muito prazeroso, o processo com o pastel e suas nuances, meio tons, feitos principalmente com os dedos, saltando de Michelangelo aos pintores anônimos e não menos inspirados das cavernas dos sonhos, tendia à suavidade e placidez. Eu estava nas nuvens, mas não funcionava nos dias de maior angústia. Era preciso mais resistência, embate, exaustão. Assim, as cinco pedras foram trazidas. Aleijadinho, tens na Barra Funda um beato. Fiz ali o seu altar. Meus apóstolos carrancudos. Outro santo mitológico desse templo-arca de noé, foi mestre Guarany. Converse com ele se quer saber dos mais sobre os bichomens. Nos esquecemos, mas as carrancas sempre foram navegantes, antes de serem decapitadas e transformadas em encostos de portas, chaveiros. As figuras e desfiguras resultantes desse processo sem fim, começaram então a fazer as inevitáveis perguntas, daquelas que só as esfinges sabem fazer. Assim surgiram as telas, que no princípio seriam bandeiras. Foram nove pinturas embandeiradas em tinta acrílica com dimensões que variam de 1,50 metros a 2,50 mts. Assim os meses foram passando, e o trabalho seguia muito bem obrigado, preocupantemente alheio às notícias. E segue a guerra híbrida. Com ou sem sintomas. As pessoas cada vez mais rastejantes nas calçadas. Abraços? Estou devendo muitos, e precisando de outros tantos. Cloroquina? Não engoli. Amigos de amigos eu perdi. Sorte e azar. Vivenciar o sistema estrebuchar. Mas uma coisa nessa história toda confesso: Adoro as máscaras. E mais uma vez elas foram salvadoras. Criei uma série de seis máscaras que trazem estruturas traçadas de arame com intervenções em tecido. Assim pude explorar os dotes de corte-costura de minha sócia-relíquia resguardada, Regina Boni, que trouxe ironia: leveza e equilíbrio para o aço distorcido. São máscaras fragilíssimas, e assim permanecem, tremulando sobre mesinhas-corpo de ferro enegrecido. As estacas estavam firmadas mas faltava ainda alguma coisa, me assoprou o Cachorro Azul. Não falei dele ainda porque considero desnecessário. Ele é onipresente, está sempre ao meu lado e tudo escuta e observa, você sabe, ou saberá. Era preciso fazer o jardim para o Pássaro Madrugada, e como bom fiel, mais de bicho que de gente, obedeci. Com o templo erguido e o mundo ruindo, acendi o neon de Salomão(pra sempre Jorge) e fui pro piano entoar o hino de conclamação. Nada é impossível. Agora cante conosco.
Você que anda nas nuvens
Procurando enrosco
Trazendo um osso
Já pode entrar
No templo do Templo do Cachorro Azul
Você que cava um fosso
Na sala de espera
Pra outra era
Já tem lugar
No Templo do Cachorro Azul
Você que engole cabelo
Pra sonhar corujas
Ganhou um pouso
Pra pernoitar
É O Templo do Cachorro Azul
Você que canta pra marte
Que chora formigas
Siga as pegadas
De quem sumiu
No Templo do Cachorro Azul
Você que foi vítima
De um algorítimo
Não perca o ritmo
Vem se vingar
No Templo do Cachorro Azul
Você que sonha com nada
E lembra de tudo
Traz sua fome
E vem lanchar
No templo do Templo do Cachorro Azul
Você que trama um soneto
Que demole o prédio
Com as próprias asas
Venha quedar
Templo do Cachorro Azul
Vocé que rasga dinheiro
Que rege mutucas
Não tem desculpas
Pra não somar
No Templo do Cachorro Azul
Você que foi dinossauro
Que foi meteoro
E hoje é mutante
Venha mamar
No peito do Cachorro Azul
Refrão
O cordeiro está nu
O porteiro dormiu
Foi assim que eu entrei
E chamei vocês também